Arquivo da categoria: Baú do Cinema

Três Mulheres

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Talvez o filme mais diferente do grande cineasta Norte-americano. Envolto em mistério, traz a simplicidade da convivência entre duas personagens, Millie (Shelley Duvall) e Pinky (Sissy Spacek), explorada através do olhar da obsessão e do apego. As marcas mais recorrentes em sua filmografia aparecem timidamente, ou quase não aparecem. Assim como suas personagens, maravilhosamente estranhas e fora de lugar, Três Mulheres é O “patinho feio” da sua prolífica carreira.

Rapidamente, o que salta aos olhos é a figura da bruxa. Na verdade, a personagem não é nomeada, mas seu rosto de feições marcadas: nariz em formato de gancho e chapéu que lembra ao dos peregrinos ingleses, criam uma similaridade muito forte. Essa figura, misteriosa, se porta de maneira onisciente, indo e vindo, apenas observando e pintando. Aliás, suas pinturas estão presentes durante todo o filme e tratam-se de uma fonte inesgotável de mistério e significado. Nelas, vê-se figuras contorcidas, em poses de ataque ou defesa, com características masculinas e femininas (pelo menos como uma parte da sociedade as taxa). Em meio ao mar de pinturas que aparecem, a de uma dessas figuras, que possui uma grande barriga, como se estivesse grávida, é a que me parece ter a maior força.

A gestação, seja de um novo ser ou de um novo sentimento, me parece despontar como um dos temas mais fortes, se essa classificação for possível num filme tão não-linear e imprevisível. Um sentimento nobre, como o amor, pode resultar no ciúme ou no ódio. Assim como uma criança, indesejada, pode trazer dores e desconfortos a mãe, por maior que seja o amor desta por aquela.

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A isso, a imagem vista através de um aquário, que aparece muitas vezes durante o filme e, algumas delas, sem justificativa prática, amplifica e comenta sobre este tema. A mesma água que carrega o conforto da barriga materna, traz as incertezas da vida que flutuam graciosamente sobre o oceano do destino; lento, mas implacável. As próprias locações, exercem um comentário, também, sobre isso. A segurança do ambiente de trabalho que, por sinal, é o local onde as duas mulheres se conhecem, é oposta aos locais exteriores. O primeiro, lembra a uma incubadora: devagar, seguro e dócil. O segundo é brutal, repleto de perigos e árido pela poeira implacável que sobe do chão.

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A Califórnia carrega as discrepâncias norte-americanas. A busca por luxúria, o consumismo e o falso sorriso trazem consigo as contradições fundamentais desta sociedade. Todos querem ser astros: ricos, famosos e reconhecidos, uma tríade personalizada pelo personagem de Edgar, um ex dublê fracassado de Hollywood. No final, ele morre. E as mulheres, que por si só são uma provocação a esses valores, vivem em comunhão. Três pequenos barcos, de carcaça dura, lapidadas por seu gênero, rumo ao desfiladeiro da sociedade opressora.

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Mulheres cuja sina, muitas vezes, se queda em receber algo que não querem. Seja o cortejo, a agressão, o amor, a obsessão ou o doloroso desprezo, que é brutalmente aplicado a personagem de Shelley Duvall. Ignorada, chacoteada e taxada de “excêntrica”, tenta fazer de tudo para entrar, mas sempre recebe a resposta dura da sociedade, representada pelos seus vizinhos “descolados”, que não a consideram apta a entrar naquele ambiente.

Tudo parece se encaminhar a um fim. A casa rústica que abriga as mulheres, no final do filme, se assemelha as primeiras casas dos peregrinos; uma imagem fantástica que nos faz regressar no tempo (aliás, imagens com essa qualidade são recorrentes). Sua coloração desbotada, composta de branco e marrom, iluminada em luz difundida pelas nuvens, traz a sensação do passado. Já a luz alaranjada, recorrente no filme, apresenta a sensação do início. Altman parece lançar um questionamento filosófico sobre a própria obra: Seria isto o fim, ou o início? Parece-me uma questão que apenas as mulheres devem responder.

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Direção: Robert Altman

Fotografia: Chuck Roscher

Roteiro: Robert Altman

Arte: James D. Vance

Montagem: Dennis Hill

Elenco: Shelley Duvall, Sissy Spacek, Janice Rule, Robert Fortier…

Duração: 124 min.

O Padre e a Moça

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Há algo de místico em O Padre e a Moça. Algo que se sente em alguns outros filmes; aqueles que dão os sentimentos mais esquisitos, mas que de tão peculiares torna-se difícil explicar com palavras o que se sente ao assisti-los. É inútil tentar estabelecer uma sistematização para traçar os porquês do filme causar o que causa. O texto vira, então, impressões do filme. O máximo que se pode fazer é tentar explicar o que foi experimentado e listar alguns dos aspectos que mais agradam, de forma que o crítico se torna, de certa maneira, impotente diante do cinema. Este parece ser o poder de um filme feito com verdade.

Dentre tudo o que mais encanta é a forma que a música parece refletir todos os outros aspectos dentro do filme e destacar a incrível melancolia presente no conjunto das ações e na concepção de destino, que me pareceu a grande força impulsionadora do filme. A peça de Carlos Lyra é arrebatadora no sentido de construir um sentimento de inevitabilidade diante do sentimento que os dois personagens apaixonados sentem, e na trajetória para concretizarem este amor.

No enterro do padre Antônio, a melodia transpõe uma grande melancolia; mas de escala épica. Como se aquele fosse um episódio chave, que é de fato, e inevitável para que a história siga. Ai parece se traduzir o ciclo da vida que se encerra na morte; e dela nasce um amor incontrolável e proibido. O padre e a moça, mesmo sabendo das consequências da sua relação, não conseguem conter seu amor, que soa como uma peça pregada pelo diabo nos dois amantes.

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Além deste grande entrevero para que o amor se concretize, há outras condições que o dificultam. Por exemplo, a natureza da cidade em que habitam os personagens. As pessoas da pequena cidade de São Gonçalo do Rio das Pedras veem cada passo dado por seus vizinhos e se não veem, ficam sabendo. Isso pelo tamanho da cidade que é brilhantemente ressaltado pela música que, ás vezes, remete a um sentimento provinciano.

Essas dificuldades percorrem todo filme e são destacadas pela fotografia de Mario Carneiro, que além de criar texturas e formas que remetem a uma cidade pequena do interior de Minas Gerais, como as ladeiras íngremes, paredes tortuosas e as sombras naturais que se misturam ao ambiente; também ajuda a construir a atmosfera que percorre a duração da obra. O alto contraste entre preto e o branco conta uma história em si mesmo, e o conflito proveniente desse embate se adiciona a tensão sexual que é tema central deste filme.

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Depois dessa longa jornada, o amor é consumado e morre no “fogo do inferno”; como se fosse o julgamento daqueles personagens por suas ações. O cineasta, porém, não “interfere” nisto. São os próprios moradores da cidadezinha que o fazem, como se fossem dotados de autoridade para tal. O encerramento vem por um trecho do poema de Drummond: “Ninguém prende aqueles dois,
Aquele um negro amor de rendas brancas”. Sugerindo uma continuidade metafísica aquilo e, num tom sombrio rodeado pelo preconceito e maldade humana, que, independente do fim que teve, o amor valeu a pena.

Nesta hora, me dou conta da genialidade da escolha que, acredito eu, é a principal para a construção da atmosfera do filme. Ao optar por filmar em São Gonçalo do Rio das Pedras, Joaquim Pedro de Andrade traz uma enorme carga de melancolia que é responsável por esta estranheza descrita no primeiro parágrafo. “Aqui não vem mais ninguém, padre. Tem muita serra pra subir. Descer pra ir embora é mais fácil”, diz Fortunato. Um lugar de imensa beleza, com gente sofrida, mas que parece parado no tempo, tanto nos costumes, como nas construções que ali estão imóveis por mais de cem anos.

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O Padre e a Moça (Brasil, p&b, 1965)

 

Direção: Joaquim Pedro de Andrade

Fotografia: Mario Carneiro

Roteiro: Joaquim Pedro de Andrade

Elenco: Helena Ignez, Paulo José, Mário Lago, Fauzi Arap, Rosa Sandrini

Duração: 90 min.

Rebecca

POSTERUma das grandes obras do maestro e seu primeiro filme nos EUA, Rebecca têm a característica do que se chama um filme Hitchcockiano. E que característica é essa? Para mim, todos os filmes do mestre do suspense tem apenas uma coisa em comum: um entendimento e domínio absoluto da arte cinematográfica. O cinema como uma grande máquina repleta de parafusos e válvulas e Hitchcock como alguém que sabe exatamente como opera-la para conseguir o resultado desejado.

O aspecto que mais diverge dos outros filmes do mestre inglês é a natureza das ações. A maioria dos seus filmes anteriores tinham como base fugas, perseguições, buscas. Algo de natureza física, visível; ação como movimento. No longa de 1940, a grande maioria das ações são psicológicas, atmosféricas, intangíveis. O grande motivador tanto da história como do estilo é de como Rebecca de Winter, mesmo estando morta, afeta a vida de uma jovem mulher (Joan Fontaine), cujo nome nunca é revelado, que acabou de se casar com Maxim (Laurence Olivier), ocupando o lugar da sua falecida esposa. As influências da antiga senhora de Winter são sentidas tanto de forma psicológica como de forma concreta, mas, das duas maneiras, afetando o casal.

Rebecca (1940) Directed by Alfred Hitchcock

A mansão, Manderley, é uma peça central para a criação da atmosfera do filme. Os cômodos são enormes, bastante abertos, muito bem mobiliados e com contornos extremamente rebuscados e valiosos. Isso é um dos motivos que fazem com que a nova senhora de Winter não se sinta confortável na sua nova casa. A enorme formalidade é algo presente no cotidiano da mansão. Cada refeição é servida no horário correto, dentro de recipientes de prata e por um exército de funcionários que estão à disposição para auxiliar em qualquer dificuldade. Não são poucas as situações em que jovem mulher se sente desconfortável. Não só com esse ambiente e essa rigidez, mas com a constante comparação a antiga senhora de Winter. Rebbeca é presente naquela mansão pela relação com os funcionários (uma em particular continua “leal” a ela) e também pelos grandes “R” que aparecem bordados em lenços e lençóis por quase todo lugar, implicando que mesmo morta ela ainda está ali; como sugerido pelo poético plano sequência que abre o filme. Vemos a jovem mulher sonhando com a mansão, em um momento, uma nuvem projeta uma sombra no lugar da mesma forma como a influência de Rebecca na vida do casal. Uma sombra que deixa tudo escuro, mas é passageira.

Sendo a sociedade dá época muito mais machista se esperava da mulher que sua função fosse apenas a de “esposa”. Isso, para a jovem, é expresso nos momentos em que fica sozinha na casa. Os funcionários sugerem para ela sempre a rotina da falecida esposa, relatando que naquele determinado horário, ela geralmente escrevia cartas, ou se embelezava no seu quarto. Algumas vezes, a nova senhora Winter acata essas sugestões substituindo, de fato, o lugar que era ocupado por Rebecca.R DE REBECCAApesar desse desconforto a jovem aparenta estar perdidamente apaixonada por Maxim, mas sempre com certo receio da natureza do relacionamento entre os dois. No início, paira a dúvida de que ele se casou com ela apenas para tapar o buraco deixado pela falecida esposa. Já em outro momento, ela desconfia que Maxim esteja ainda perdidamente apaixonado por Rebecca e por isso não se sente atraído por ela. Tudo é preparado para o que acontecerá no futuro do filme. Nada é por acaso. Essas informações são base para algo importante que, adivinhe, você terá de assistir o filme para saber o que é.ELE E ELA ABRAÇADOSCom isso não me refiro apenas aos Closes que demonstram com certa obviedade, mas inegável eficiência, um acontecimento. Hitchcock apresenta algumas situações de forma discreta, construindo uma rede impecável, mas sutil entre os personagens e suas ações de forma que quando uma informação ou situação é apresentada a reação seja um longo “Aaah táááá” exclamado mentalmente. Além disso, o maestro demonstra um domínio absoluto do suspense, algo que viria a ser  confirmado com propriedade ainda maior nos seus filmes seguintes. O jogo com as informações, característico deste gênero e, consequentemente, do seu mestre, fica claro no filme. É revelada apenas uma parcela da informação sobre alguém ou alguma situação de forma que fiquemos tensos para saber o que aconteceu ou o que irá acontecer.

Em uma ocasião, a jovem quebra uma pequena estátua por acidente. Apenas ela e o espectador, é claro, sabem disso. Mais tarde ela é confrontada sobre isso, sendo informada que um dos empregados foi acusado de quebrar esta estátua e corre risco de demissão. Por gostarmos da protagonista e pela informação ter sido escondida das outras pessoas, ficamos na expectativa de que ela conte a verdade. Cada segundo a mais aumenta esta tensão, pegando o espectador em uma armadilha sadicamente preparada por um homem que, sem dúvida alguma, entendia de cinema.rebecca_1621669i Por Alan Leonel Rebecca ( Rebecca, A Mulher Inesquecível, EUA, 1940)

Direção : Alfred Hitchcock

Roteiro : Philip MacDonald, Michael Hogan, Joan Harrison, Robert E. Sherwood, Daphne du Maurier (História)

Elenco : Laurence Olivier, Joan Fontaine, George Sanders, Judith Anderson

Duração : 130 min.

O Espirito da Colmeia

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Um uso muito particular de imagens e sons para se criar poesia, mas nunca uma poesia alheia, dissociada da realidade. Em O Espírito da Colmeia, a expressão revela sempre um estado de espírito, como se cada aspecto de cada quadro mostrasse-nos não apenas o que o autor está pensando e sentindo, mas servindo de espelho da alma para um país inteiro. Cada símbolo e gesto tem algo a nos dizer; cada movimento tem uma camada adicional metafísica e mesmo que uma ação não faça sentido, imediatamente, sabemos que, de alguma forma, aquilo está nos impactando de um jeito belo, quase subliminar, que encontra uma maneira discreta e abstrata de nos dizer concretamente: Olhe, é isso que estou sentindo.

O filme não se trata de um narrativo clássico. Não há uma ação crescente, nem um clímax forte. Simplesmente acompanhamos duas garotinhas, Ana (Ana Torrent) e Isabel (Isabel Tellería) no seu dia-a-dia. Em um momento, as duas assistem Frankenstein, de 1931, e isso acaba acarretando uma mudança sutil, mas ao mesmo tempo, muito forte.d2d4e0ba19fed8a32814060328187127

O que se tem de perceber é que há uma camada metafísica em tudo o que se vê e ouve no filme. Nada quer dizer, apenas, o que se enxerga na superfície. Temos sempre que adiantar o passo e tentar entender o que está sendo dito. A metáfora com as abelhas parece ser a mais forte das associações que o filme propõe. As janelas, quase todas com padrões hexagonais, remetem as paredes de uma colmeia, aludindo ao estado de espírito daquela família e da sociedade espanhola dos anos 40. Parecem enclausurados em um regime, completamente alienados e desprovidos de qualquer criatividade, como as abelhas que apenas produzem seu mel, alheias a realidade e confinadas a trabalhar sem saber para quem e por quê.

As abelhas são constantemente filmadas em um plano melancólico, que as mostra fora do seu habitat natural, dentro de recipientes fechados e apertados, infelizes e perdidas. Vemos as abelhas zanzando sem direção e uma, especificamente, parada; como quem olha para o horizonte sem saber o que fazer. O tom amarelado da luz, além de sugerir um lugar velho e atrasado, dá uma cor de mel a tudo, aproximando ainda mais essa relação com as abelhas.COLMENA-3A família parece ir desgastando suas relações cada vez mais à medida que o filme se passa. Quase nunca vemos a família junta, nem mesmo o marido Fernando (Fernando Fernán Gómez) e Teresa (Teresa Gimpera), vendo, em um momento, apenas o rosto de Teresa enquanto ouvimos a movimentação de Fernando e vemos a sua sombra projetada na esposa. As plantações mortas e empoeiradas, os edifícios em ruinas e os cômodos vazios refletem as relações entre aquela família, e que, para mim, representa a Espanha como um lugar desgastado e fragmentado.

Alguns símbolos chegam até a destacar aquele lugar, não só como uma representação da Espanha dos anos 40, mas toda a história daquele país. Algumas construções medievais, a natureza camponesa da vila em que se passa a história, bem como uma cena específica em que se vê crianças pulando uma fogueira, aludem a um passado sombrio e, em alguns casos, não tão distante.

As duas garotinhas soam como representações da nova geração daquele país. Os padrões hexagonais na janela sugerem um ciclo da vida inevitável; as meninas tem que dar continuidade à geração passada. Isabel é a mais brincalhona, mas, ao mesmo tempo, a que parece mais acomodada com aquela situação. Já Ana é inocente, mas parece ter algum tipo de preocupação; saber que há algo de errado naquele universo.espiritu_2O Frankenstein parece ser o que é de pior naquela sociedade, mais especificamente, a ditadura de Franco. O monstro é o que incita a mudança nas duas garotinhas, sublinhando o maior tema do filme. Enquanto Isabel parece ignorar o monstro, Ana reconhece a sua presença e isso parece minar a sua inocência e a infância; enquanto é exposta a um mundo cruel e indiferente aos seus sonhos, Ana sofre uma mudança, que sempre se manifesta de forma discreta e bela e que faz com que, no final, a garotinha se acostume com a dura realidade, como sua irmã diz em um ponto do filme: “Tudo no cinema é falso, é tudo ilusão”.0153023_40483_MC_Tx360Um símbolo, que aparece diversas vezes, me chamou atenção. Um relógio de bolso que ao abrir, toca uma música nostálgica que remete a infância, aos sonhos e fantasias. Esse relógio pertence a Fernando, mas em um momento, passa pelas mãos de um fugitivo do governo, provável membro da resistência republicana, e de um general. No final do filme, esse relógio acaba voltando para Fernando, num desfecho triste, mas feliz de uma certa maneira. Sugerindo que, para aquelas pessoas, resta apenas esperar aquele tempo ruim passar e se agarrar nos sonhos.ari-kovaninin-ruhu-fragmani-izle_28

O Espírito da Colmeia (El Espíritu de la colmena, Espanha, 1973)

Direção : Victor Erice

Roteiro : Victor Erice, Ángel Fernández Santos, Francisco J. Querejeta

Atores : Ana Torrent, Isabel Tellería, Fernando Fernán Gómez, Teresa Gimpera…

Duração : 97 min.

Passos na Noite

where-the-sidewalk-ends-movie-poster-1950-1020413541Passos na Noite (Where the Sidewalk Ends, 1950) é, ao mesmo tempo, um filme que segue e não segue as “regras” que se convencionou como características de um Noir. Tem no seu esqueleto chapéus e cigarros, sombras e disparos, claro, mas é a prova viva de que o que se denomina Filme Noir é um estado de espírito e não um gênero. Esses filmes podem ter elementos recorrentes e até serem muito parecidos, mas não precisam seguir fórmulas ridiculamente estabelecidas para serem enquadrados em uma “categoria”, que sequer existe. Prefiro dizer que os filmes dos anos 40 e 50 deixaram uma contribuição incomensurável para o cinema, e que até hoje, são inspiração para os cineastas.

A chave é entender o que essa leva de filmes têm como característica central a sua maneira de retratar a sociedade. O sentimento de aprisionamento, a desesperança, a visão de um mundo corrompido em que se age apenas por interesse são os aspectos mais fortes desse cinema e os aspectos que são mais capazes de aproximar um filme a outro. A maneira de retratar essas visões e angústias, é claro, diferem de filme para filme, mas o alto contraste e as formas pontiagudas parecem predominar, embora não se deva caracterizar esses filmes de acordo com essa estética.wherethesidewalkends2Nesse sentido, Passos na Noite retrata desde os primeiros planos estes sentimentos. Vemos partes de calças e sapatos sociais transitando pela calçada até chegar a um bueiro por onde corre o que tem de mais sujo naquela cidade. Durante esse percurso, os sons dos carros e suas buzinas denunciam uma metrópole caótica em que se perdeu o senso de coletividade e cada um vive por si. Ao longo do filme acompanhamos o detetive Dixon (Dana Andrews) durante uma jornada trágica e reveladora, se relacionando com mafiosos e uma polícia ineficiente. O destino do detetive parece inevitável. Parece estar fadado a se tornar como o pai, um criminoso que morreu tentando escapar da cadeia quando Dixon tinha 17 anos. Embora seu grande objetivo seja movido por motivos pessoais, na maioria das ocasiões revela-se como um sujeito correto. Age dessa maneira até quando comete um crime e tem a oportunidade de confessa-lo ou mentir, e para se safar, acaba escolhendo a segunda opção.Dana Ai parece ser sublinhado o maior tema do filme. Basta apenas uma situação em que se tenha a opção de contar a verdade ou mentir, para que uma pessoa se torne criminosa. Dixon, que de inicio tem ojeriza a criminosos e quer coloca-los na cadeia a qualquer custo, acaba se tornando um, até em um momento aparecendo com um bandeide no rosto, assim como usava o criminoso que ele assassinou. O filme pede a opinião do espectador quando nos demonstra esta situação e o contexto em que o detetive se encontra. Se coloque no lugar dele; cometer um crime sem intenção, sabendo que a polícia é ineficiente e o seu universo é injusto. Como proceder diante dessas circunstancias?

É revelador como quando o detetive tem a chance de escapar impune, acaba confessando o crime e sendo preso. Algo que demonstra bastante da relação que tinha com o pai. O instinto de se afastar do destino que ele teve fala mais alto e Dixon opta por confessar. Não por altruísmo ou senso de justiça, mas simplesmente por ter o pai como um exemplo bastante negativo.gary-merrill-wherethesidewalkends-3Otto Preminger movimenta a câmera como um virtuoso. Seus travellings (deslocar a câmera no espaço) passeiam entre os atores graciosamente, entendendo perfeitamente os personagens e seus objetivos. Em uma cena, quando o detetive descobre que o mafioso está morto, a câmera se aproxima lentamente do rosto de Dixon para enxergamos seu pior medo e desespero profundo em estar se aproximando do pai.

O uso da música, de forma a incorpora-la como uma ferramenta para acrescentar realismo é fantástico. Pode-se ouvir Para Elisa, de Beethoven, enquanto o detetive tenta carregar um corpo nos ombros sem ser notado. Nos é revelado, depois, que uma senhora que mora ao lado escuta música enquanto dorme. Contrapõe-se completamente o sentimento daquelas imagens, se adicionando uma camada de realismo e subjetividade a elas. Uma das coisas que mais me impressiona no filme é a maneira de retratar as brigas. Por meio do realismo, esses conflitos físicos são apresentados com violência. Em alguns momentos ouve-se apenas as respirações ofegantes de quem briga e o barulho do contato de seus corpos. A reação aos golpes é natural e crua, de uma maneira que não se faz mais. Na maioria do cinema que assistimos, as brigas parecem cada vez mais e mais ensaiadas e artificiais, não mais o conflito em si, mas sua caricatura. Nada poderia combinar mais com o tom desesperançoso, individualista e enclausurado do filme, que um conflito físico que demonstra não diversão ou entretenimento, mas medo, angústia, dor e uma vontade desesperada de escapar daquilo.tumblr_llat84LSqo1qhlul0o1_500 Passos na Noite (Where the Sidewalk Ends, EUA, 1950)

Direção : Otto Preminger

Roteiro : Ben Hecht

Atores : Dana Andrews, Gene Tierney, Gary Merrill…

Duração : 95 min.